Depois de um dia a ouvir o telefone a tocar, receber cartas e postais, estar com a família e receber um abraço caloroso dos amigos que ainda restam, cansada, sento-me finalmente no meu cadeirão, um lugar na casa que me pertence e que só para mim está reservado. Dou um suspiro profundo e preparo-me para me consciencializar que hoje, dia 27 de Março, acabo de fazer os meus oitenta anos. Estou feliz, estou triste, estou sem esperança e cheia dela ao mesmo tempo. Oitenta anos…idade bela, idade sabedoria, e eu atingi-a num ápice. Sentada no meu velho cadeirão, virado para o mar, vejo toda a minha vida a passar-me em frente aos olhos. Bons momentos, maus momentos, paixões vividas, paixões sofridas! Como era ingénua, sempre serei, toda a gente o é, uns mais, outros menos. Ilusão, sonhos, borboletas e flores num campo a cheirar a primavera.
Lembro-me de olhar para debaixo das mesas e das cadeiras parecerem uma montanha inalcançável. Lembro-me do meu pai, dos seus olhos ternos e das suas histórias de aventura. Minha mãe, sempre tão cuidadosa! Que saudade de poder correr livre pela beira-mar, de dançar com as ondas e chegar a casa cheia de areia.
Lembro-me do meu primeiro dia de aulas, mãos transpiradas do nervoso, agarrada às saias da minha mãe. O exame em que tive negativa e fiquei uma semana de castigo.
Oh, se me lembro do meu primeiro amor, rapaz formoso, cobiçado por muitas mas que só cedeu aos meus encantos. Ai, e a desilusão de saber que aos 14 anos ninguém casa e, por isso, ele não poderia ser meu marido. Sempre gostei da idade que tinha, nunca quis ter menos nem mais nem parecer como tal. Agora, de cabelos brancos apanhados, fundas rugas no rosto, de tantas preocupações, sustos e sobressaltos, costas um pouco curvas e mão firme na bengala, orgulho-me dos meus 80 anos e felicito-me por ser como sou e por ter aproveitado cada momentos como aproveitei. Vivi muito, passei por muito, vi muitos partirem e muitos a este mundo chegarem.
Lembro-me do dia do meu casamento, meu marido era pecador, peito rijo, queimado pelo sol. Como éramos felizes!
Antes do casamento, a minha despedida de solteira! Todas as minhas amigas reunidas e rimos a noite toda! Meu marido depressa partiu, deixando-me com as suas cinzas nas mãos para que as atirasse ao mar.
Sempre que quero estar perto dele, basta-me olhar pela janela! Lembro-me de chorar muitas mágoas e amarguras neste cadeirão e o mar sempre foi o meu refúgio. Agora, neste momento, sinto a alegria a invadir-me e todos os meus receios, de vir a ser uma velha inútil, passaram!
Como é bom recordar! E se um dia vou ser pó, cinza ou nada, que seja a minha noite uma alvorada, que me saiba perder para depois me encontrar…